"O brasileiro tem paixão pelo luxo", entrevista com Gilles Lipovetsky

Um dos mais badalados e provocativos filósofos contemporâneos, o francês Gilles Lipovetsky, 68 anos, é um especialista em analisar as questões que permeiam a sociedade consumista e de aparências em que vivemos. “O homem moderno tem necessidade de emoção e, para a maioria das pessoas, isso passa pelo consumo”, diz ele. “Quando você não tem tantos amores ou grandes emoções, o consumo funciona como um prazer fácil, que traz satisfação momentânea.” Autor dos livros “O Império do Efêmero”, “Luxo Eterno” e “A Sociedade da Decepção”, todos publicados no Brasil, ele prepara para 2013 uma obra sobre as relações entre o capitalismo e os fenômenos estéticos. Nesta semana, Lipovetsky chega ao Brasil para participar da conferência internacional sobre luxo The New World of Luxury, e falou à ISTOÉ de sua casa em Grenoble, na França, onde leciona filosofia.


ISTOÉ: No Brasil, a classe C tem estabelecido padrões culturais, como na música, que estão sendo adotados pelos mais ricos. Como o sr. vê esse fenômeno?
Gilles: Esse fenômeno não é exclusivo do Brasil. Ele acontece em outros países também, a exemplo da China, e é um reflexo do novo significado do luxo. Hoje, não há mais regras para o consumo do luxo, já que ele se traduz como uma expressão do individualismo. Cada um tem a sua ideia do que seja luxo. E é aí que entram as expressões culturais das camadas populares e experiências singulares, como, por exemplo, comer um prato típico em uma favela do Rio de Janeiro, o que já se tornou um programa turístico ou de ricos excêntricos. O que as pessoas querem dizer por meio do consumo hoje é quem elas são. Querem afirmar sua identidade, e isso vai além do gosto estético. E os desejos das pessoas não estão mais fechados em códigos ligados a determinadas classes sociais.

ISTOÉ: Todas as classes sociais desejam o luxo?
Gilles: Sim. A população pobre brasileira também deseja muito o luxo. O Brasil é um dos países onde a paixão pelo luxo é mais evidente. Analisado filosoficamente, ele é uma vitrine do status sensual, e a questão da sensualidade ainda está muito arraigada na cultura brasileira. Vocês se mostram mais e têm paixão por tudo o que é aparência: o corpo, a riqueza, o prazer. Acredito que nos próximos cinco ou dez anos veremos uma ascensão das marcas brasileiras de luxo, tanto na moda quanto no mercado de cosméticos. O Brasil também apresenta um potencial muito grande para o turismo nesse segmento, que ainda deve ser explorado. E o número de consumidores de luxo no País vai aumentar. É um mercado em plena ascensão.

ISTOÉ: A origem dos produtos ainda importa?
Gilles: O consumidor moderno não é mais tradicional. Hoje as pessoas são móveis, então por que os produtos não seriam? Não faz diferença para um comprador se aquele sapato foi feito na Itália ou na China, desde que ele tenha uma marca, o que, teoricamente, garantiria sua qualidade. Já as grifes respondem de formas diferentes a isso. A Chanel, por exemplo, faz questão de que todos os seus produtos sejam fabricados na França, enquanto a também francesa Hermés acaba de fechar uma parceria com uma empresa chinesa para fabricar suas famosas bolsas e artigos de luxo lá na China. E eu acho que essas parcerias serão cada vez mais comuns nesse mercado.

ISTOÉ: Qual é o limite para essa globalização?
Gilles: A globalização não tem um limite, mas o crescimento econômico sim. E esse teto é determinado pelo limite do nosso planeta. Os ecologistas defendem que é preciso mudar nosso modo de vida, consumir menos, ou então imaginar processos de produção que sejam menos “gulosos”. Podemos consumir menos produtos materiais e mais serviços, limitar o desperdício e ir atrás de coisas mais sustentáveis. Não acredito, porém, que o consumo vá diminuir. O homem moderno tem necessidade de emoção e, para a maioria das pessoas, isso passa pelo consumo. Quando você não tem tantos amores ou grandes emoções, o consumo funciona como um prazer fácil, que lhe traz satisfação momentânea. Por isso não vejo o desejo pelo consumo recuar.

ISTOÉ: Até que ponto o consumo pode satisfazer alguém? Ou determinar sua identidade?
Gilles: Vivemos em uma época em que a grande utopia é a busca da felicidade privada, e o consumo é visto como um dos meios para alcançar essa felicidade. Mas todo mundo sabe que o consumo não faz ninguém feliz. Consumir traz satisfação, que não é a mesma coisa que felicidade. Se você compra um carro, se faz uma viagem, o consumo lhe proporciona uma sensação de evasão, o faz esquecer seus problemas, mas esse sentimento é temporário. Então a civilização hipermoderna tem algo de paradoxal. Corremos atrás de algo que não dá felicidade, nem infelicidade. Mas não devemos “diabolizar” o consumo. É fácil criticar o consumo quando temos muito, mas os mais pobres aspiram ao consumo, pois ele significa progresso. As pessoas vivem melhor com boa saúde, e isso não pode ser desassociado do consumo, pois precisamos comprar remédios e ir ao médico para vivermos saudáveis. O consumo também é capaz de abrir um leque de possibilidades culturais. Por meio dele podemos conhecer o mundo e outras culturas, e isso nos ajuda a conhecer melhor a nós mesmos.

ISTOÉ: Como as novas tecnologias e as mídias sociais estão afetando a forma como nos vemos e lidamos com nossa aparência?
Gilles: A coisa mais surpreendente das novas mídias sociais é o paradoxo do individualismo. As pessoas adoram dizer que querem manter sua autonomia e individualidade, mas não é isso que transparece nas redes sociais. Ali, o indivíduo autônomo se revela dependente dos outros e da aceitação alheia. Por que as pessoas escrevem no Facebook? Cada um que escreve espera um retorno. Espera que alguém curta sua foto ou espera comentários positivos, espera, enfim, a aprovação dos outros. Nas redes sociais todos somos exemplares. Colocamos apenas nossas melhores imagens e exibimos nossas melhores qualidades, justamente porque queremos que as pessoas nos aprovem. Por outro lado, é preciso ser otimista em relação a essas novas formas de comunicação. Muitos críticos afirmam que hoje as pessoas só têm relações virtuais, online, e que não há mais relações reais. Mas isso não é verdade. As pessoas que estão conectadas também se encontram fisicamente. Então é claro que a relação virtual não destrói o desejo de ligação física. Isso é um mito.

ISTOÉ: Na sociedade atual, é mais importante ser rico ou jovem?
Gilles: Nas classes média e alta, há hoje em dia um desejo feroz por manter-se jovem. Faço muitas conferências sobre a beleza e, no Brasil, as mulheres vêm me falar que, com 40 anos, estão velhas. A exigência de parecer jovem se tornou algo importante. Antes o importante era mostrar que era rico, agora é parecer jovial. Nos EUA e na Europa as mulheres já gastam mais com hidratação, ou com botox e cirurgias estéticas, do que com produtos de maquiagem. No Brasil você vê mulheres com cabelo branco (risos)? A cultura brasileira ensina que as mulheres precisam esconder a idade tingindo os cabelos. Alguns estudiosos dizem que esse fenômeno é uma tirania e não vai durar; vamos ter de aceitar nossa idade. Não acredito nisso, essa é a cultura moderna. Não acredito que vamos recuar com a cultura da juventude. Penso que um dia teremos técnicas muito mais avançadas para nos manter sempre jovens.

ISTOÉ: Como descreveria, citando uma expressão sua, o mundo de hiperconsumismo em que vivemos?
Gilles: Tudo no dia a dia depende de uma compra. Somos constantemente obrigados a comprar. Se você sai, tem de pegar o carro, o avião, e isso implica gastar dinheiro. Pense em coisas que antes não eram consumidas. Da última vez que estive em São Paulo o motorista me levava ao hotel, e, no caminho, via as pessoas correndo em academias, em esteiras. As pessoas hoje pagam para correr, sendo que antes corríamos de graça. Antes, para nadar, íamos aos rios. Agora precisamos pagar para frequentar piscinas. Antes, quando tínhamos problemas pessoais, falávamos com o padre e ele dizia o que fazer. Hoje falamos com o psicólogo. O gesto mais elementar da vida, que é conversar, pedir conselhos, virou consumo, pagamento.

ISTOÉ: O sr. diz que vivemos na “sociedade da decepção”. Por que, apesar de todo o progresso, estamos mais tristes do que nunca?
Gilles: O problema da sociedade da decepção é que sentimos que nunca estamos consumindo o suficiente. O lado ruim do consumo não é somente o excesso, mas também o fato de que muitas pessoas sofrem porque acham que não consomem o suficiente. Se você não tem internet ou telefone celular, se sente infeliz. O mundo no qual estamos entrando é um mundo competitivo e difícil. As necessidades são enormes, e as pessoas não podem pagar por todas elas. Aí o déficit de consumo vira um drama. Antes, as pessoas ficavam em casa nas férias e não sofriam com isso. Hoje, se você nunca sair de seu bairro, você ficará triste. Mudar tornou-se essencial. Mas, como o dinheiro não é proporcional aos desejos de consumo, há uma frustração.

ISTOÉ: Por que não gosta da expressão “tirania da felicidade”?
Gilles: Eu penso que a expressão é excessiva. A verdadeira tirania hoje acontece na Síria, onde o Estado massacra sua própria população. Não podemos esquecer que a sociedade de consumo contribuiu para pacificar a população, pois, por meio do consumo nos sentimos mais cidadãos, mais parte de algo comum. Isso é verdade na Europa, e também no Brasil, apesar de a sociedade brasileira ainda apresentar níveis altos de desigualdade e violência.

ISTOÉ: O sr. consome produtos de luxo?
Gilles: Amo charutos. Não fumo muito, em média um por dia, mas definitivamente não são charutos de luxo (risos). A questão do luxo me apaixona, revela coisas interessantes sobre a condição humana. Você pode achar estúpido, supérfluo, mas não é.

Entrevista: Paula Rocha
Adaptado de: ISTOÉ Independente
Acesso em: 04/09/2012, às 17h40min.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...