Chacina do Realengo, por Rosa Godoy

Encaminhando...
Às Autoridades deste país,

Li tudo que pude, publicado até o presente momento, a respeito da tragédia acontecida na escola do Realengo, no Rio de Janeiro.

E meditei muito antes de tomar a decisão de escrever este pequeno texto.

Não gostei, de forma alguma, de nenhuma das declarações: da Exma. Sra. Presidente da República, do Exmo. Sr. Ministro da Educação e do Exmo. Sr. Governador do Rio de Janeiro.

Da Presidente Dilma, em quem votei, discordo da afirmação de que o acontecimento não faz parte da cultura brasileira.

Do Ministro da Educação, discordo de sua declaração, agora, após este acontecimento, de que a Educação brasileira está de luto.

Do Governador do Rio de Janeiro, discordo de sua qualificação sobre o assassino dos estudantes como um animal.

Minhas refutações:

Ø a Presidente só tem razão quanto à forma e não quanto ao conteúdo: a forma do assassinato coletivo em escolas, à moda norte-americana, de fato, não era usual em nossas práticas sociais, até agora. Mas quanto ao conteúdo, Sra. Presidente, ignorar que a violência está presente no cotidiano de nossas escolas, é tapar o sol com a peneira. É retórica. A violência está presente, há muito tempo, nas escolas, sob as mais diversas formas: agressões entre alunos, de alunos contra professores, e, mesmo em escala menor, de professores contra alunos.

Ø Em decorrência, acho que está refutada a fala do Ministro. Por que só agora, quando a tragédia é coletiva, o Sr. Ministro vem a público para dizer que a Educação está de luto? Faz muito tempo, décadas, que a Educação brasileira está de luto, não apenas pela violência que grassa no meio escolar, mas também pela omissão dos nossos governantes ante a própria educação.

Ø Sobre a fala do Sr. Governador do Rio de Janeiro: é muito fácil achar um bode expiatório e – desculpem a expressão – “tirar da seringa”. Neste discurso, a fala oficial quer atribuir a um indivíduo – autor material do crime - toda a culpabilidade. Assim fazendo, escamoteia-se a responsabilidade dos governantes.

A Escola vem sendo um dos mais expressivos espaços de violência de nossa sociedade. Tanto a pública quanto a privada. Basta ler os noticiários.

A Educação, notadamente a pública, aquela apenas à qual pode aceder a grande parte da população brasileira, está no abandono. Reconheço que não faltam políticas públicas para uma série de aspectos a ela referentes, como cursos para qualificação de professores, cursos direcionados para o respeito às diversidades, cursos direcionados para os Direitos Humanos, etc etc etc, mas faltam medidas efetivas para garantir a segurança nas Escolas, de alunos e professores; faltam políticas fortes e concretas de combate às drogas (um dos maiores, senão o maior, fatores da violência escolar).

Faltam políticas fortes para criar valores moralmente sadios na infância e na juventude. Por que? Porque a sociedade contemporânea, nutrida diariamente por anti-valores humanos, como o consumismo desenfreado, a competitividade destrutiva, o individualismo exacerbado, vem sistematicamente implodindo valores necessários à produção/reprodução de uma sociedade: um mínimo de direcionamento para a existência humana como referência fundamental e magnífica – a vida como valor; de cooperação societária, de perspectiva e engajamento coletivos.

O magistério, essa outrora profissão respeitada - e essencial a qualquer sociedade para que se concretize a transmissão do patrimônio cultural de uma geração a outra, para que a geração mais nova possa elaborar, no seu tempo histórico, o seu patrimônio cultural – vem sendo desqualificado, conspurcado, aviltado, desrespeitado pelos vários segmentos sociais, a começar de nossos governantes. Não precisamos ir longe: vários estados brasileiros (leia-se: seus governantes), estavam se recusando a pagar um piso salarial para os professores da Educação Básica, sob a alegação de que as contas dos estados e municípios não suportariam os custos e de que o piso salarial seria inconstitucional. . Mas ... a União, os estados e municípios suportam (!!!) os custos de empreguismo sem concurso de parentes e aderentes, de falcatruas com o dinheiro público, de licitações direcionadas e tortuosas, de não obediência dos dispositivos legais sobre gastos públicos, .... contra isto, os governantes não se indignam. Ao contrário: posam de virgens imaculadas.

Quando uma professora do Rio Grande do Sul foi agredida, recentemente, fato amplamente divulgado pela mídia, por um aluno com uma cadeira, o Ministro da Educação não se pronunciou. Tantos episódios de agressão nas Escolas! E o Sr. Ministro da Educação não se pronunciou. Por que o fez agora? Por que o assassinato da Escola do Rio de Janeiro não só foi coletivo como, principalmente, reverberou na mídia fortemente ... e na mídia internacional. E aí, a preocupação parece ter sido muito mais o arranhamento que isto possa produzir na imagem do Rio de Janeiro com vistas à Copa do Mundo e às Olimpíadas. Do que o fato em si. Porque as imagens mascaradas da realidade, nestes discursos, parecem valer mais do que a própria realidade.

Aí, só ai, a Educação se fez de luto? É brincadeira, Sr. Ministro. Não nos tome por idiotas.

Igualmente. Sr. Governador Sérgio Cabral, não nos tome por idiotas.

Quando li sua infeliz e preconceituosa declaração sobre o assassino, o primeiro cuidado que tive, foi tentar saber quem ele era. Suspeitei que era alguém cuja vida seria uma dessas vidas – tantas vidas jovens! – desperdiçadas deste país. Por falta de Educação. E é. Somente olhando para o rosto do jovem e depois lendo o bilhete de despedida que deixou, muita coisa pode se analisada. Primeiramente, apesar da declaração de sua irmã, de que ele seria professo do islamismo, não coloquemos a pecha maldita sobre esta religião que tem uma profunda e admirável relação com a divindade, tanto quanto outras religiões. Cuidado com nossos preconceitos de estigmatizarmos o Outro, especialmente quando o Outro nos agride, como neste caso. Nunca paramos para pensar que nós também agredimos o Outro, porque é mais cômodo. Porque o recado final do trágico assassino fala em Jesus, portanto ... porque a figura de Jesus é mais própria de nossa cultura ocidental do que da cultura islâmica. Cuidado com qualificativos de primeira hora.

Ademais, Sr. Governador, é muito fácil, como eu já disse, achar o bode expiatório e se eximir das responsabilidade dos gestores públicos: o assassino entrou na escola como bem quis, sem controle de segurança. A maioria esmagadoríssima das escolas desse país não tem esquema de segurança. Nem as elites estão a salvo em suas escolas privadas.

Agora, chamar o assassino de animal pode ser alvo de várias contestações, inclusive judiciais. Talvez a intenção de Vossa Excelência tenha sido atribuir ao assassino a falta de razão que os animais não teriam. Porém, deixo aqui alguns modestos questionamentos: 1º) Vossa Excelência ofendeu aos animais, cujo reino nos pode transmitir muita sabedoria, para a qual, infelizmente, o ser humano não atenta; 2º) Tem muito ser humano desprovido de razão, por uma série de justificativas, entre as quais, porque não foi educado para usar a razão; 3º) Muitos seres humanos auto-considerados racionais, auto- carimbados de racionais, especialmente porque vêm de classes dominantes e têm diplomas universitários e são nossos governantes, cometem desatinos que animais não cometeriam, como permitirem que pessoas se instalem em áreas de risco ambiental, sem regras e sem freios de dispositivos legais públicos, causando tragédias a exemplo das acontecidas no Morro do Bumba (Angra dos Reis), em Petrópolis e Teresópolis. E tantos outros exemplos, em cada um dos estados brasileiros.

Animal? Quem é animal?

Quem é animal no sentido da desrazão?

Só pode ter desrazão quem tem a razão como qualificativo ontológico do seu ser. Esse assassino suicida pode não ter tido a chance da razão na sua vida.

Mas muita gente que se acha, que acha que teve e tem a razão, continua confundindo que tem (equivocadamente) a razão, quando o que tem, não passa de uma miopia.

O assassino dos estudantes da escola do Realengo carrega muita gente para a morte. E não são, apenas, os estudantes que, efetivamente, morreram por ele assassinados.

Que destas mortes, oxalá, emerja uma cáustica reflexão sobre os nossos erros em relação à educação brasileira. Que esses estudantes mortos e seu assassino brotem em flores, como flores, de uma outra educação, mais igualitária, emancipatória, igualitária.


8/04/2011
Rosa Maria Godoy Silveira
Drª. em História Social pela USP
Professora da UFPB

O Google nos deixa boobos? ~ Nicholas Carr

Nos últimos anos tenho tido um sentimento desagradável de que alguém, ou algo, tem brincado com meu cérebro, remapeando meu circuito neural, reprogramando minha memória. Não estou perdendo a cabeça, mas ela está mudando. Mergulhar em um livro ou longo artigo costumava ser fácil. Agora minha concentração começa a se dissipar depois de duas ou três páginas.

Acho que sei o que está acontecendo. Tenho passado longas horas online. Como escritor, a internet é um presente dos deuses. Para mim, como para outros, a web está se tornando um meio de comunicação universal, o conduíte para a maioria das informações que passam por meus olhos, meus ouvidos, até minha mente. Mas essa bênção tem um preço. Os meios de comunicação não são apenas canais passivos de informação, disse Marshall McLuhan na década de 1960. Eles fornecem o material para o pensamento, mas também modelam o processo de pensamento. E ao que parece a internet está estilhaçando minha capacidade de concentração e contemplação.

Para Maryanne Wolf, psicóloga do desenvolvimento da Universidade Tufts, "não somos somente o que lemos. Somos como lemos." A leitura profunda não se distingue do pensar em profundidade. O estilo promovido pela internet, de eficácia e imediatismo acima de tudo, pode estar enfraquecendo nossa capacidade de leitura profunda. A internet agrupa a maioria das tecnologias intelectuais. É mapa e relógio, impressora e máquina de escrever, calculadora, telefone, rádio e televisão. Quando absorve uma mídia, essa mídia é recriada à sua imagem. E sua influência não termina na tela do computador. Quando a mente das pessoas se sintoniza com a louca colcha de retalhos da internet, a mídia tradicional tem de se adaptar às novas expectativas do público.

Como nas fábricas, a internet é uma máquina projetada para coleta, transmissão e manipulação da informação de forma eficiente e automatizada. O Google procura sistematizar tudo que faz. Coleta todos os dias dados comportamentais em sua máquina de busca e os usa para refinar os algoritmos que controlam cada vez mais como as pessoas encontram informação e extraem sentido dela. Para a empresa a informação é uma commodity que pode ser obtida e processada com eficiência industrial. Tenta até "construir inteligência artificial e fazer isso em escala industrial", diz Larry Page, um de seus fundadores. Ele assume que todos estaríamos em melhor situação se nosso cérebro fosse complementado, ou mesmo substituído, por inteligência artificial, o que é perturbador. Isso sugere que a inteligência é resultado de um processo mecânico, uma série de passos que podem ser isolados, medidos e otimizados. No mundo Google há pouco espaço para contemplação. Ambigüidade não é uma abertura para a o insight, mas um vírus a ser consertado. Quanto mais rápido surfarmos – quanto mais links e páginas acessarmos –, mais oportunidades o Google e as outras empresas têm para coletar informação e nos alimentar com publicidade. A última coisa que elas querem é encorajar a leitura prazerosa ou o pensamento lento e concentrado. Está em seu interesse econômico nos levar à distração.

O surgimento de novas tecnologias sempre tende a levantar suspeitas. Platão criticou a palavra escrita. Havia quem acreditasse que a disponibilidade de livros, depois de Gutenberg, levasse à preguiça intelectual. Portanto, deve-se ser cético quanto a meu ceticismo em relação à internet. Talvez brote das mentes abarrotadas de dados uma era de ouro de descobertas e sabedoria universal. Mas sou assombrado pela negra profecia de Stanley Kubrick no filme 2001 - Uma Odisséia no Espaço: quando passamos a depender dos computadores para mediar nossa compreensão do mundo, é nossa própria inteligência que se achata ao nível da inteligência artificial.


Nicholas Carr, extraído de artigo publicado na Atlantic.
Revista da Semana, 26 de junho de 2008.
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