Meu navio corpo encalhou num banco de areia quando comecei a singrar velozmente as léguas dos vícios. E agora o vigor da juventude é uma ilha perdida a mil milhas daqui.
Meu navio espírito encalhou em maré baixa quando minha fé foi saqueada pelos piratas do templo é dinheiro. E agora rezo às vitrines dos shoppings, esses altares iluminados e profanamente sagrados para o homem contemporâneo.
Meu navio coração encalhou nos recifes para onde as sereias me atraíram. E agora confundo seus cantos dantes melodiosos com estridentes risadas de escárnio.
Meu navio ideologia encalhou quando votei, errei e meus eleitos partiram em seus iates. E agora estou jogado aos tubarões que comem peixinhos mirrados e plebeus como eu.
Meu navio consumidor encalhou nos ouvidos surdos do tele atendimento, que só tem tempo para vender. E agora corro atrás da furreca da garantia do liquidificador. O que era para facilitar o meu dia-a-dia serve apenas para desperdiçar os meus dias.
Meu navio cidadão encalhou no chiqueiro imenso da economia porcalhona. E agora procuro, sem achar, uma ONG não corrompida. Havia uma, disseram, mas afundou por falta de financiamento.
Meu navio desejo encalhou no furacão dos corpos nus, reais e virtuais, que me envolvem. Não tendo igualmente corpo tentador para trocar me restaria o consolo de comprar unzinho, mas agora estou pelado com a mão no bolso vazio.
Meu navio contribuinte encalhou e a guarda-costeira só açode mediante propina. E agora espero um fiscal mais compreensivo e mais baratinho.
Meu navio transcendental encalhou na porca miséria da matéria. E agora medito sobre as contas a pagar no final do mês, no final dos tempos dos eternos carnes.
Já me imaginei navio senhor dos sete mares. Encalhei na realidade e me vi canoa furada. E a água continua subindo.
Ulisses Tavares até sabe que o navio de nossa vida nem sempre chega ao porto pretendido. Mas não se conforma. Coisas de poeta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário