Determinada a retirada dos crucifixos dos prédios da Justiça gaúcha: há
alguns dias esta notícia vem causando polêmica e discussões. Resumi
aqui, de forma simples e direta, respostas às dez perguntas e argumentos
mais comuns a respeito do assunto.
Na vigência da atual
Constituição, laicismo significa a separação entre religião e Estado,
devendo este tratar todos os credos religiosos de forma igual, sem
manifestar predileção ou preterimento em relação a qualquer delas. Fica
afastada também a possibilidade de alguma entidade religiosa influenciar
no exercício do poder político.
Todos os particulares são livres para, de forma individual ou em grupo, ter qualquer crença e manifestá-la livremente (observando, é evidente, os demais valores constitucionais), sendo vedado ao Estado manifestar qualquer forma de crença religiosa.
“Mas o Estado laico não é um Estado ateu!”
O Estado laico não é
ateu, de fato. Mas também não é cristão, judaico ou muçulmano. O
laicismo, em sua face de liberdade de expressão e de crença, revela-se
no dever de o Estado tolerar manifestações individuais ou coletivas de
determinado credo. Mas para o Estado não existe esta liberdade de
manifestação religiosa. Ele não deve manifestar apoio ou predileção em
relação a apenas uma religião ou um deus específico, pois assim estaria
preterindo as outras crenças.
Isso não corresponde a
um Estado ateu, pois são admitidas iniciativas do Estado que beneficiem
todas as religiões indistintamente, vedando-se apenas a predileção a uma
delas.
“Qual a importância da laicidade? A maioria da população é cristã! Não deveriam imperar os valores cristãos?”
A maioria da população
Brasileira crê no Deus judaico/cristão. Mas ainda temos a minoria, que
crê em outros deuses ou não crê em deus algum. Vivemos em uma sociedade
plural e multifacetária, e não em uma ditadura da maioria sobre a
minoria. Exatamente por isso a CF previu a laicidade do Estado. Só há
liberdade religiosa para todos quando a laicidade é observada.
O Brasil sempre foi um Estado laico?
O Brasil já foi um
Estado confessional (com uma religião oficial). Na vigência da
Constituição de 1824, a religião oficial do Império era a Católica
Apostólica Romana. As outras religiões eram apenas toleradas, vedando-se
a existência de templos externos (era permitido o culto doméstico ou
particular). Considerando a quantidade de privilégios de que gozava o
culto católico na época, bem como as restrições que sofriam as outras
crenças, podemos afirmar que naquela época não existia uma liberdade de
crença plena.
Com a República, na
Constituição de 1891, veio finalmente a laicização do Estado e uma
liberdade religiosa mais ampla, admitindo-se e respeitando-se todas as
igrejas e crenças religiosas. Nesta constituição, não havia no seu
preâmbulo invocação a Deus.
As igrejas passaram a
ter personalidade jurídica na forma da lei civil, os casamentos
religiosos não teriam mais efeitos civis e foi proibido o ensino
religioso nas escolas públicas. Os cemitérios antes controlados pelas
igrejas, agora estariam sob a administração dos municípios. Este foi o
período em que o Brasil teve a mais rígida separação entre Estado e
religião.
A Constituição de 1934
manteve a laicidade do Estado, mas trouxe de volta alguns pontos de
contato entre religião e o Estado. Voltou-se a admitir o casamento
religioso com efeitos civis e o preâmbulo constitucional passou a fazer
referência a Deus.
Da Constituição de 1937 à
de 1988 não houve alteração de grande vulto na relação entre o Estado e
a religião. Desde então não há religião oficial, e invoca-se a proteção
de Deus no preâmbulo.
“Mas afinal, qual é o problema de haver símbolos religiosos em prédios públicos?”
O crucifixo é simbolo
próprio da fé e da moral cristã. No Brasil, ele é relacionado
principalmente (mas não somente) à igreja católica, que historicamente
tem representado a religião dominante no país.
A presença de um símbolo
de uma religião específica (seja ele um crucifixo, uma estrela de Davi
ou um despacho) em um prédio público revela a predileção do Estado em
relação a uma religião em especial, preterindo as demais. Isso não pode
acontecer em um Estado democrático, laico e plural.
Além do dever de
preservar o tratamento igualitário entre todas as crenças, há o problema
relativo ao que a presença do símbolo de determinada religião sobre a
cabeça de um funcionário público pode implicar. Todos nós sabemos que
cada religião tem os seus dogmas e ideologias próprios. O magistrado
inevitavelmente vai sofrer, em certa medida, influência das suas
experiências vividas e das suas convicções pessoais no momento do
julgamento: isso é algo que não se pode evitar. Ele deve, entretanto,
tentar manter o máximo de imparcialidade possível no momento de aplicar o
direito ao caso concreto. A presença de um símbolo religioso sobre a
sua cabeça é como uma “carta branca” do Estado para que ele decida de
acordo com os dogmas daquela religião (coisa que, em princípio, deveria
ser desestimulada pelo Estado). Isso pode influenciar em diversas
decisões judiciais, como, por exemplo, nas relativas ao aborto de fetos
anencéfalos e as relacionadas à união homoafetiva.
O bom aplicador do
direito, na interpretação, deve usar as normas jurídicas como
instrumento para chegar ao resultado interpretativo, e não limitar-se a
usar o direito como mero elemento justificador das suas convicções
pessoais preexistentes ou dos dogmas de determinada religião.
O juiz pode até ter um
crucifixo no pescoço ou um no seu gabinete privado, pois isso está no
âmbito da sua manifestação individual de crença. Mas o Estado não pode
manifestar predileção por credo algum, razão pela qual é errado haver
qualquer símbolo religioso colocado pelo Estado em prédios públicos.
“Os crucifixos
estão lá há muito tempo! Eles fazem parte da nossa história e da nossa
cultura! Eles não deveriam permanecer lá por isso?”
O aspecto cultural e
histórico, por si só, não é capaz de atribuir a algo compatibilidade em
relação à Constituição. A escravidão e o nepotismo, por exemplo, por
muito tempo fizeram parte da cultura do nosso país – o nepotismo ainda
faz, na verdade. Mas o fato de fazerem parte da nossa história e da
nossa cultura não torna nenhum dos dois compatível com a Constituição.
Cultural é a presença de imagens da deusa da mitologia grega Têmis,
cuja figura é mundialmente relacionada à justiça. Ninguém coloca a
imagem da Têmis em um tribunal por ter fé religiosa nela, por adorá-la
ou porque está disposto a pautar-se pelos seus dogmas. Ela é apenas um
símbolo da justiça.
“Os crucifixos são símbolos genéricos e representam todas as religiões! Por isso, podem ficar lá!”
Não se trata de simples
decoração dos prédios públicos. Os crucifixos são os símbolos mais
representativos do cristianismo, e são bem específicos desta crença,
assim como a estrela de Davi é do judaísmo. Sua fixação em prédios
públicos revela predileção do Estado por esta crença específica, em
detrimento de todas as outras.
“E quanto ao preâmbulo? Lá há referência a Deus! Isso não mitiga a laicidade e torna a presença dos crucifixos constitucional?”
O preâmbulo não integra o
texto da constituição no sentido normativo, nem serve de parâmetro de
controle de constitucionalidade (o próprio STF afirmou isso na ADI nº.
2076-5). Em razão disso, não se pode afirmar que algo é constitucional
por estar de acordo com o preâmbulo, enquanto há uma previsão no texto
constitucional propriamente dito que a torna inconstitucional.
O preâmbulo nem é
considerado norma jurídica. É só um “recadinho” dos que exerceram o
poder constituinte, servindo no máximo para auxiliar a interpretação do
texto constitucional. Eles registraram lá que acreditam em Deus, mas
sabendo que sem o laicismo não há liberdade pra ninguém, deixaram esse
valor registrado no texto constitucional propriamente dito.
“Isso é
frescura! Nós não deveríamos parar de nos preocupar com coisas pequenas
como estas e dedicar mais atenção aos temas mais importantes, como o
combate à corrupção?”
Nós temos na
Constituição diversos valores que merecem proteção por parte do Estado.
De fato, alguns merecem uma proteção mais célere e efetiva do que
outros. Mas isso não quer dizer que devamos ou possamos, em nome da
proteção de determinado valor, sacrificar outro, deixando-o ao relento,
sem receber proteção alguma. Quando se trata de valores constitucionais,
não jogamos o jogo do “tudo ou nada”.
“Mas e os feriados religiosos? E os nomes de cidades como Salvador e São Paulo? Eles também não feririam a laicidade do Estado?”
A estes casos sim,
deve-se atribuir a característica de fatos “histórico-culturais”. O nome
de Salvador, por exemplo, foi dado em uma época em que nós sequer
tínhamos uma Constituição própria, e a primeira que viria ainda teria
como religião oficial a Católica Apostólica Romana. A maioria dos
feriados religiosos que nós temos hoje também veio em períodos em que o
Brasil não era um Estado laico. A história e cultura de um Estado devem
ser levados em consideração, impedindo a alegação de
inconstitucionalidade em relação a determinados fatos já consumados, que fazem parte da nossa cultura e integram a nossa história.
Hoje, entretanto, na
vigência da atual Constituição, entendo não ser possível a instituição
de novos feriados religiosos que contemplem apenas uma crença. Como bem
lembra Pedro Lenza (Direito Constitucional Esquematizado, 2011), este
foi o entendimento que prevaleceu na ocasião da visita do Papa Bento XVI
ao Brasil, no ano de 2007, quando buscava-se declarar o dia 11 de maio
(dia da canonização do Frei Galvão) feriado religioso. Ao final da
discussão no âmbito do Congresso Nacional, promulgou-se a Lei
11.532/2007, que instituiu o dia 11 de maio como o Dia nacional do Frei
Sant’Anna Galvão, sem conotação religiosa, inserindo-se o dia no
calendário histórico-cultural brasileiro. Não se atribuiu à data, em
razão da laicidade do Estado, o status feriado religioso.
Mesmo sem se atribuir o status
de feriado religioso, é questionável, no âmbito de um Estado laico, o
estabelecimento de uma data comemorativa que faz referência a apenas uma
religião. Mas este é tema pra uma outra conversa.
Acredito que o mesmo
entendimento deve ser aplicado ao nome de novos municípios que vierem a
surgir, bem como ao nome de instituições públicas (como o nome de alguns
colégios públicos, que adotam nomes de santos – não deveríamos ter
instituições de ensino públicas com nome de qualquer entidade religiosa,
seja ela orixá ou santo).
Kelton Actis, bacharel em Direito com
especialização em direito privado. Advogado
Retirado de: http://sociedaderacionalista.org/2012/03/10/dez-perguntas-e-respostas-sobre-os-simbolos-religiosos-nos-tribunais/. Acesso em: 10/03/2012, às 15h10min.
Imagem: http://sul21.com.br/jornal/2012/02/tj-rs-usou-preambulo-da-constituicao-para-justificar-uso-de-crucifixos/
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